As duas amigas se encontraram depois da morte de João Pedro.
Estavam no restaurante Das Mangueiras que fica no Poço das Panelas em Recife.
Acima das mesas e das cabeças havia enormes guarda-sóis verdes. Acima dos guarda-sóis verdes telas trançadas e reforçadas protegendo as cabeças de possíveis quedas de mangas maduras.
Marina olhava na direção dos banheiros, no final do caminho marcado pelos troncos das árvores onde havia um pula-pula para as crianças que faziam algazarra enquanto seus pais comiam tranquilamente.
Ela olhava distraída na direção das crianças quando reconheceu a amiga.
Desde os saltos, ao andar apressado e tenso de pessoa sempre atenta, típico das que nunca relaxavam, até a roupa bonita e um tanto demodê _ era Angélica. Ela usava uma pantalona clara com florzinhas bordadas na barra, vinha andando naquele chão coberto de pedrinhas de brita e areia que davam o tom rústico do lugar, super chic e cult faziam Das Mangueiras um restaurante top, na moda mesmo. Um cenário que revelava o quanto aquela pessoa dos saltos, daquela senhora com cabelos castanhos armados em coque e com qualquer coisa de laquê que arranjava os fios rebeldes, típicos das senhorinhas pernambucanas_ Angélica.
Com certeza era Angélica, Marina pensou um tanto descrente até porque já passados pelo menos 20 anos desde última vez que a vira.
Elas falaram da morte de João Pedro, mas não revelaram que haviam transado há anos atrás com aquele cara.
E ainda quando elas eram casadas. Sexo a 3. Ménage mesmo.
Pois Marina fora casada com Garcia, hoje é viúva e solitária morando no Porto em Portugal. Angélica ainda casada com um chileno de olhos puxados que todos chamavam de Tchilo, um casal bem conservador ao contrário de Marina e Garcia, e que tinham se mudado a pouco tempo para esse bairro emergente.
-Foi AIDS?
-Não amiga. Não não. Ele era maluquinho, mas foi o coração. Acho que nem se morre mais de AIDS hoje em dia…
Pararam aí nas conversas, pararam aí.
Sobre o não revelado, marcaram um segundo encontro num café para semanas depois. Dividir um café para dividir um segredo.
Na verdade para Marina, talvez Angélica fosse a única pessoa alí no Recife com quem falar. E ela precisava falar. Não somente da sexualidade alheia. Ela precisava falar.
Uma situação que gera tamanha curiosidade, ambas ansiosas, por que ambas queriam dizer algo no sentido de revelar. (Por que teriam as pessoas essa necessidade?)
No final ambas voltaram para casa espantadas com a história que ouviram, ou seja, ao desejo de dividir revelar sobrepôs uma sensação de verdadeiro espanto e surpresa. Ambas acharam que iriam provocar e voltaram provocadas.
Algumas dúvidas. Interrogações várias.
Como esse cara conseguiu guardar segredo e elas também. Eram tempos diferentes, mais ninguém ao menos disconfiava do comportamento ousado dessas pessoas.
Pois no passado jamais desconfiariam que Angélica e Tchilo também tivessem sido seduzidos e também pelo mesmo amigo. Ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo!
Eis o que se passou:
-Ai amiga obrigado por ter vindo, sabe essa cidade está tão foda, as pessoas assim tão foda, e não tenho encontrado ninguém e essa coisa da morte João Pedro parece tão foda também.
Me desculpe viu.
E desculpe aquele dia no restaurante estava mais abalada um medão entalado. Sabe?
-Medo?
De descompensar, amiga (por que as pessoas têm esse medo?), sabe, de chorar além da conta. Enfim feliz de te ver e tudo. E com a morte dele …
Sim … também eu tava abalada não ao ponto para descompensar…
As preliminares ao assunto demonstrava certa insegurança, certa relutância, como uma timidez antiga ao adentrar assuntos tabus.
E pegar que antes elas estavam ambas tão resolutas para o contar.
Por incrível que pareça, foi Angélica quem quebrou a barreira, entrando de viés no assunto
-Sabe, me chocou tanto JP morrer agora. Não estávamos tendo contato mais. A
Última vez que nos vimos foi na Fliporto. E falamos tão rapidamente, eu fiquei olhando quando ele se afastou e uma certa alegria senti porque ele ainda exalava um certo tesão, estava bem … e após todos esses anos.
A amiga fez um ar de inquietação ajeitando se na cadeira.
Ai quando éramos jovens, sabe naquele tempo, aconteceu de transarmos, eu ele o Tchilo, meu marido. Foi uma das coisas mais loucas que fizemos enquanto casal. Mas foi tão …
Interrompeu quando notou o olhar espanto de Marina
-Nossa sério? Eu não sabia. Não sabia mesmo …. mas também eu e Garcia tivemos algo com ele. Durou um tempo. Mas nunca, nunca imaginei que vocês também …
Nesses momentos os cérebros humanos dão aqueles loop searching procurando imagens na memória, procurando coincidência de datas, procurando qualquer coisa que consiga aplacar a ansiedade do descrédito, do desejo e da curiosidade. Pois era maluco que elas
conviveram tanto tempo juntas, frequentaram tantas festas juntas com várias grupos distintos e confidenciaram tantos outros segredos. Então
Deixaram tanto tempo se passar para compartilhar essa coisa agora.
Mexeram o açúcar na xícara de café. Dissolvendo como uma gota de tinta que cai na água e voce chacoalha até ela diluir por completo. Assim também nossa memória das coisas, dilue mas deixa marcas.
O looping de Angélica parou achando coincidência bem no dia da morte do Tancredo Neves.
-Sabe o dia da morte do Tancredo Neves? Tanto tempo né? (Essas coisas que a gente não esquece).
Era uma segunda feira. Lembro bem. Ele apareceu lá em casa por não precisa trabalhar e tals decretado feriado. Passamos um dia preguiçoso. Fumamos e tals
Daí uma hora ele deitou no meu colo. (Tudo Começou assim)
E de repente estávamos os 3 no Mesmo sofá velho. Ai Um sofá grande e velho.
Olha, Sabe de uma coisa … neste mesmo dia … só que de noite, ele passou lá em casa também. Essas coisas, essas datas a gente num esquece. No dia do Trancredo ele passou em casa também.
Quase se permitiram rir. Mas não hoje.
Por hoje sentiram se estranhas.
Estranho descobrir agora quando ele não está mais por aqui. Mas por outro lado sentiram que haveriam outros encontros como esse.
-Sim ainda fico um tempo no Brasil. Vamos marcar sim.
Mas sabe amiga, não era só isso que eu precisava te falar (era Marina falando). Entre as coisas dele encontrei uma carta. A carta mais triste do mundo.
Foi uma sobrinha dele que me entregou umas coisas. Várias coisas. Anotações. Cartas. E essa uma. A carta mais triste do mundo …
… Continua …
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