domingo, 17 de julho de 2022

A carta mais triste


Era uma tarde quente e chuvosa quando as amigas foram recebidas com carinho no café Solene e encaminhadas às mesas do canto, perto do janelão com vista para a praça como elas pediram. 

A chuva da tarde, a mesa no canto, as pessoas desfilando de guarda-chuvas na praça, e o respeito e carinho para duas senhorinhas pernambucanas discretas habitués, tudo isso e mais a saudade após a morte de João Pedro, formavam um cenário ideal para o assunto do dia … a carta.


Elas pediram café e o bolinho de sempre. A chuva apertou um pouco lá fora.


Olha Angélica, te lembra de quando o João Pedro ficou na Suécia? 

Quando ele tava escrevendo sobre o avanço da comunicação, lá antes da internet ser o que é hoje. Ele tava envolvido lá no jornalismo, e tinha ido visitar aquele amigo dele o Bruno que se casou com um loirão sueco, lembra não?


Essa carta é desse tempo, olha aqui 1996, e tava tão bem guardada sabe. 

Me envolvi muito querendo saber a história toda. Repare como se dobrava uma carta naquele tempo, lembra?… Mas vá lá. Primeiro leia:








Stockholm, 07 Abril de 1996


Meu A.

Meu


 Como falamos ao telefone, ando imensamente triste, você sabe 

Eu precisava logo escrever 

Eu eu sei nós sabemos da beleza de receber as palavras escritas

Não é tão rápido uma carta chegar aí  no Brasil (eu sei), mas bem mais barato que nossas horas em ligação internacional. Eu gosto e vejo infinitamente bem realizado meu desejo de expressar o que sinto. Tô satisfeito com as palavras que te mando só espero que alcancem o intento que encha seu coração de depois que encheu o meu.


É Amor o que me faz sentir triste.

O  Kristofer se foi com essa doença triste que assola nossa existência um novo câncer do que mais triste e devastador. Me encontro devastado


Tanto eu quanto ele já tínhamos nos habituado, não tava mais tão em pânico com os tratamentos pesados e tudo mais e o fato é que eu achei que estava preparado. Estava mesmo. A gente tava se sentindo forte.

Mas depois num tava mais.

(Eu queria chorar com você por ele e por nós … a lágrima que cai agora no papel … tive que fazer umas pause … a lágrima é também porque nem sei quando essa carta chega às suas mãos … e grito Deus por quê tudo tem que ser assim?)

Tá um vazio tão absurdo de enorme. 

Nada mais frio que me deitar sobre a lápide. Chorei muito. O mármore é um bloco de gelo àquela hora do dia, mas na verdade nem mesmo sabia qual era a hora do dia em que me encontraram lá sobre o gelo. Vazio. Chorando.

Vai passar? 

Olhe

Meu vazio que só pode ser preenchido por você. 

Coloquei você em todos os cantos da casa e vi que cabe.

É porque eu preciso que venha. Cabe sim, mas olhe

Olhe você não vai precisar ficar aqui onde tudo absolutamente tudo lembra o Kristofer, eu mudei umas fournitures de lugar é que às vezes nem eu sei se caibo aqui

Bem, você também pode ficar lá no predinho do Sodermalm de novo, vai ser bom para lembrar momentos felizes, mas te imploro que venha.


Lembra a primeira vez que vieste quando eu e o KriS ainda não morávamos juntos?

Ficaste lá no apartamento baixo da rua e eu pulava o mundo muro para te ver

(Você vai achar que te faço recordar por chantagem emocional) e até eu acho que é, mas foi tão lindo e quisera que tudo voltasse exatamente agora como as imagens que estou vendo e parecem reais sobre este caderno em que escrevo.

A gente tinha tido aquele lance rápido quando eu já tava de partida do Brasil para cá. Foi rápido mas intenso demais … fiquei com aquela ótima impressão sobre você e já te queria tanto.

Quando meses depois desembarcaste aqui na Suécia meu coração pulou.

"Meu coração pulou. Você chegou, me deixou assim. Com os pés fora do chão." Lembra quando me mostrou essa música que eu não conhecia?

Então eu tive que pular o muro pra te ver. Mentir um pouquinho para o Kristofer _ que na época ainda não morávamos juntos.

Ah que lindo quando chegou. Que segurança me passava ... apesar da distância … que segurança quando ficava sobre mim ... e naquela nossa primeira noite ... ahhh!!!

Daquela vez em que deitaste sobre mim sobre minhas costas.

Você segurou minhas mãos e ordenou que eu ficasse quieto. Eu fiquei.

Nem gostava de ser subjugado e imobilizado, mas obedeci por um momento pra satisfazer você. Estava todo penetrado em mim.

E daí achei que eu não estava tão imobilizado assim, pois umas partes de mim se mexiam 

lá ... internamente. Sensação interna.

Sentia seu membro pulsando dentro de mim, como se ele estivesse dizendo qualquer coisa noutra língua. Mas parados. Sem bombar.

E meu pau também pulsava espremido contra o colchão. Corpo sobre corpo. Parados.

E sentia minha própria pulsação, o sangue forçando passagem onde as veias estavam sendo comprimidas como nas mãos que apertavam forte.

Até Kristofer concordava com sua intensidade. É verdade.

E depois, na segunda vez que você veio pra cá, daí ficou com a gente. 

Ai, como foi bom!  num foi?

Foi ótimo que ele te amou também. Tenha certeza.

Onde quer que ele esteja. Está num ótimo lugar, eu sei. E tenho certeza que ele ia querer que você viesse, ele queria que eu ficasse em boas mãos.


É que forças para voltar para o Brasil agora eu não tenho.

Por isso vem! 

Por isso que insisto tanto. Eu Te Amo.


Eu. Seu 

                    Bruno



Angélica tentou disfarçar as lágrimas enquanto dobrava a carta lida. Estava tentando refazer as mesmas dobras, cuidadosamente, lentamente alisando o papel, como que para desfazer sua leitura, também para se refazer por um momento. Então tomou outro gole do café. Ergueu a cabeça. Sim, é tudo muito triste. Falou finalmente.

- Pois ele não foi, certo?


Não. Realmente ele não foi. Ele não atendeu esse chamado do Bruno, até por que não deu tempo.

-hummm. Marina respirou fundo.

Ainda tem mais, querida … 


Eu achei a resposta à essa carta (o rascunho que o JP fez … ele o chamava de “N”uno), achei também (foi a sobrinha dele que me mostrou) essa anotação aqui sobre um jornal que falava das taxas de suicídios na Suécia e no mundo… João Pedro anotou:


“Nuno, meu amor, agora pertence a esta estatística!"


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