quinta-feira, 15 de junho de 2023

Anjos



Uma lágrima embaça meus olhos 

enquanto vejo anjos,

enquanto penso em escondê-la, 

enquanto saio do vagão, 

enquanto enxugo os olhos com as costas das mãos,

enquanto, por fim, desimporta que me vejam chorar.


CINCO 

"Não era pinga não, moço, foi só uma tentativa de suicídio. Só isso!" Eu retruquei grave e irônico a um cara que não havia visto nada da situação, mas minha ironia é coisa incapaz de ser percebida por certos tipos de pessoas que destilam palpite infeliz.

Ao mesmo tempo, uma senhora chorava copiosamente. Nem era parente dela o moribundo. Como eu, ela não conhecia aquele que tentara se jogar na frente do metrô.

Pensei na mulher. Essa que chorava, como um anjo emocionado com a vida infeliz e desesperançada. Desesperança de vida é uma coisa muito triste. Assim, imediatamente quando pensei em seres anjos … que a primeira lágrima caiu.


QUATRO 

Os funcionários do metrô por fim haviam chegado e arrastaram o moribundo para fora do trem. Eu vi se formar um aglomerado em volta e sobre ele deitado no chão da estação esperança, chamada Santa Cruz.

O cara espumava pela boca e perdeu os sentidos enquanto carregavam ele.

Ao que tudo indica havia ingerido algo … tipo muitos comprimidos, antes da tentativa de pular na via do metrô.

O anjo que carregou a mochila dele para fora do vagão gritou o quanto era pesada. Talvez a mochila pesava um tanto mais que ele, estava cheia de acontecimentos infelizes. Foram quatro pessoas para carregar um homem não tão grande, não tão gordo, cujo peso era o peso de uma vida. DAquela vida.


TRÊS 

Um anjo falou pro outro "eu já passei por isso. É difícil, mas consegui me livrar com muita oração" Ao que o outro respondeu "é que são tão diferentes os casos não? A gente tem que saber o que leva um sujeito a um desespero tão grande. Os desesperos não devem ser iguais". Eu gostava da conversa. Então um anjo interrompeu perguntando se alguém sabia para onde ele estava indo.

"Para o Tietê" o outro falou. "Ele é do interior". Interior!

"Você sabe o nome dele" eu perguntei tentando não ser tão inerte e inútil. Descruzei rapidamente os braços já que posso ser tudo, menos indiferente.

"Perguntem a ele pelo nome, talvez de alguma forma vai sentir algum acolhimento se chamarem ele pelo nome",  falei. O anjo de óculos retrucou que não adiantava e qualquer assunto, qualquer tentativa faria ele desabar. Foi mesmo.

E mesmo assim o anjo sentado perguntou o nome do moribundo.

Ele não respondeu e segurou a mochila que estava no chão, como se planejasse sair correndo dali e não-subitamente uma nova onda de choro compulsivo o impediu.

Olhou pro celular e o enfiou de volta no bolso. Quando o anjo sentado falou "olha, ele tem um celular", tive a certeza que pensava em tomar dele o celular atrás de respostas ou informações que pudessem dizer quem ele era, por que chorava, e por que a morte lhe era a única solução. Qualquer coisa que pudesse dar conta da nossa tristeza, também seria bem-vinda. Qualquer coisa. Ouvir aquele choro comovente chegava a ser desesperador.


DOIS

"Você não vai poder sair de perto dele" disse um ao outro. Daí me intrometi entre seus olhares, e notei que eles, anjos, ou haviam saído de casa sem destino, ou estavam em rotas alteradas para fazer esse atendimento. Ou talvez não teriam mais o que fazer nessa noite.

Já eu... Eu tinha. Estava indo assistir a uma peça de teatro.

"Você vai até o Tietê com ele, e se quiser eu vou junto pra dar uma força". Disse um.

"Sim" respondeu o anjo de óculos.

O anjo sentado falou que tinha percebido o olhar de desespero do cara quando estavam lá na plataforma mesmo, foi provavelmente por isso que conseguiram segurá- lo a tempo.


UM

Eu estava encostado na porta, absorto e sem noção da ação de anjos.

Depois do apito ensurdecedor de portas fechando, eles entraram trôpegos, nervosos e agitando o vagão na estação São Judas. Empurrando e segurando um sujeito que chorava copiosamente enquanto guiado, e alguém se levantou dando lugar, então sentaram-no próximo a mim.


ZERO

Eu, que não acreditava em anjos, só queria que Azrael não aparecesse esta noite.





*Fotos: Asas do Desejo e Tão longe, tão perto - de Win Wenders




quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Curtindo os curtas do Mix Brasil 2022

Para Alexia

Era aniversário da minha sobrinha (dezesseis anos). Subi em seu quarto para um abraço apertado.
Depois do abraço no meio da conversa (e como todo tio besta), perguntei: -E os namorados?

-Você é gay, né, tio?
-Sou, claro!
-Então posso falar … não é "e os namorados", tio, eu gosto de meninas. Tô namorando uma menina.
-Ah meu amor (eu, meio sem graça), que legal! Olha mesmo se eu não fosse, você poderia falar sim e contar comigo, ué.
-(Sorriso)
-Então tá namorando? Ela vem na sua festa?
-Não vem não. A família dela não sabe, eles são crentes, sabe como é.
-Pôxa essa coisa de família é complicada. Mas sempre se resolve, às vezes dá trabalho e tal, mas vocês são novas …têm todo tempo do mundo. Mas, óh, tem que contar mesmo com a gente, para qualquer problema, viu? Ouvi uma frase num documentário que dizia assim: “é errado achar que a gente dá conta sozinho!”
-Que legal, tio. Gostei. Onde dá pra assistir esse documentário?
-Ai, não dá mais. Ele estava disponível até o mês passado, mas já saiu. Eu assisti foi num festival de filmes LGBTQIA+. Lá no site do festival tem um teaser (é um trechinho curto, uma chamada para o vídeo), onde já dá pra ter uma noção, então depois te mando o link. 
-Nossa, que demais. Esse festival também parece ser da hora.
-É sim. Eu adoro. (O MixBrasil é um festival que começou só com filmes curtos _ os curtas metragens, daí foi crescendo e hoje tem até eventos literários, shows e teatros, um monte de coisas)
Bem, esse documentário se chamava "Um pedaço do mundo" e mostra a relação de 4 mulheres, mães de pessoas LGBTQIA+ com seus filhos, entre eles tem uma mãe de uma menininha trans, uma mãe de um homem maduro gay, uma mãe de travesti, e uma mãe de um casal gays. E claro, todos bem acolhidos pelas suas respectivas famílias, e eles vão contando sobre o processo de cada um.
Nossa, a mãe do homem maduro é muito fofa .. ela fala assim "dizem que isso (a homossexualidade) é coisa do demônio", aí ela passa carinhosamente a mão no rosto do filho e fala "tem nada a ver, como pode essa fofura ser coisa do demo?".
E tem outra mãe que fala aquela frase que te contei, pois ela acha errado pensar que a gente vai dar conta sozinho. Pois os filhos precisam sentir que podem contar com os pais e não podem se fechar numa batalha solitária contra o mundo. É ela quem fala a frase que dá título ao filme, parece que ela ouviu o avô dizendo "Seu filho não precisa do mundo todo ... só um pedaço dele". Não é legal isso?
-É sim, super. Que mais que tinha de legal?
-Tinha outro filme que curti demais. Chamava “Possa Poder”. Sabe quando algo te mobiliza? Muito?Foi isso ... Depois do filme teve um debate … mandei um elogio para os diretores, procurei eles no twitter, printei umas cenas do filme, enfim. Curti mesmo.
-Wow … então me conta.

Primeiro que esse festival tem um tema, o tema deste ano foi “toda forma de existir”. Esse curta tem muito a ver com isso. Com a maneira de existir.  
Vejo no filme umas respostas para a questão de como podemos existir ... encarando e nos apoiando.

O filme mostra 3 pessoas sendo de alguma forma dispensados de seus trabalhos (no começo a gente não sabe qual o motivo), Daí esses três moram juntos e quando se encontram em casa contam como foi a aventura (desventura) do dia, percebemos que são PCD (são pessoas com deficiência, sabe, a gente não deve dizer deficientes e nem portadores _ eu gosto da sonoridade da sigla, acho que "Pc" rima com "pessoas" que é bom sempre lembrar), bem na verdade duas PCD e uma mulher trans.

Ao ouvir o relato de um deles, a amiga manda uma frase que achei marcante:

"É impressionante. Não nos querem nem nas ruas, nem nas casas".

Achei que a frase serve para eles enquanto corpos diferentes e serve para as minorias em geral … tipo a homossexualidade, as travestis e todos as pessoas que são olhadas como estranhos nas ruas. Muitas vezes são "estranhos" dentro das casas também.

Penso que há uma metáfora aqui (metáfora é quando se diz uma coisa e, por comparação, podemos pensar um outra coisa porque há semelhanças, similaridade, entende?), pois dá pra pensar essa frase em várias situações (por exemplo, como a sensação que eu sinto sobre querer beijar um homem na rua. As pessoas não querem homossexuais se mostrando se beijando na rua, a coisa já mudou um pouco com relação ao "meu tempo", mas ainda tem estranhamento).

Outra questão que eu levanto é que as pessoas do filme parece que estavam a oferecer serviços nas casas onde foram recusados. Ah, sim, uma personagens é encanadora. Penso ... por que alguém recusaria o serviço de uma encanadora, só porque tem corpo diferente? (Acho absurdo, e aí a frase "não nos querem também dentro das casas" bate forte). Assim como "dentro das casas" também pode representar as recusas que recebemos de família e estranhamento mesmo por parte das pessoas que a gente ama.

O legal é que nas cenas seguintes do filme aparece o convívio bacana entre os três.

Olha que lôco ... Enquanto assistia, eu estava pensando que era um filme esclarecido... tipo "entendeu? ou quer que eu desenhe?" (já ouviu essa frase?). Então a palavra que veio à minha cabeça foi essa "desenhadinho". Aí …. na cena seguinte aparece justamente um desenho. Muita coincidência com o que eu estava pensando.
Ah, tem essa foto aqui do teaser do filme, onde aparece o desenho de uma borboleta gigante na parede do banheiro … os três estão na banheira rindo. Olha essa foto aqui:


Depois estão pelados, aí você vê os corpos deles. Cada um com sua "estranheza" … só quê… aí já era tarde demais para eu achar estranho. eu já tinha me apegado a eles. E achei todos lindos dentro de seus corpos.

Daí eles se arrumam e saem para a rua, e vão tipo batendo em portas de casas, demonstrando que não desistiram.

As últimas cenas eu até copiei… e montei assim … olha … mostra esse momento em que estão talvez indo "trabalhar", indo para cidade. 
Primeiro mostra os três de costa para tela, mas de frente para a cidade. Depois eles se entreolham sorrindo, então eles olham para tela. Como se olhassem cada um da plateia.

A gente vê nesse olhar um misto de desafio dos que enfrentam adversidades.
Eu senti como se dissessem: "'e aí mano, vai encarar?"

Veja esta foto… não acha que é exatamente isso? Essa sequência …
Eu acho que estão dizendo: "e aí, vai encarar?" 

-O que você acha?


-É sim. Concordo. 

-Esse olhar para câmera resume tudo. Por isso que o filme me parece uma resposta…

         "A gente continua saindo para rua"
         "A gente se apoia para se sentir mais fortes"
         "A gente resolve encarar a cidade"

-Eles olham para mim … Enquanto uma lágrima cai, eu penso: Tá bom. Tamo junto!


Possa poder - 19min
direção de Márcio Pícoli e Victor Di Marco _Brasil/PoA-2022.
teaser:
https://mixbrasil.org.br/30/cinema/competitiva-brasil-curtas/curtas-2/possa-poder/

Um pedaço do mundo - 75min
direção de Tarcísio Rocha Filho, Victor Costa Lopes e Wislan Esmeraldo _ Brasil/CE-2022.
teaser:
https://mixbrasil.org.br/30/cinema/queer-doc/um-pedaco-do-mundo/

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Sobre o Zine2

Então nasceu meu segundo fanzine


Encaro o fanzine como um material temático de produção pessoal e fora do circuito, com características físicas e não-digitais, como uma revista dedicada (a quem possa interessar).

Acredito nele também como objeto.

Objeto de resistência, no sentido de resistir para continuar existindo, e o tema encontros que me é tão caro, entra na particularidade de pensar que o erótico é algo tão simples quanto o papel que vocês vão manusear.




Escrevo isso também em defesa do material impresso em comparação à exposição indesejada e sem limites que acontece na era digital. E também contra a superficialidade dos encontros atuais, das falsas verdades e dos eufemismos elegantes das conversas dos adultos, quando falar de sexo é quase proibido.


Para falar disso, eu não queria proibir nada e assim cheguei ao tema do símbolo da capa quando achei um artigo sobre o ano de 68, que de alguma forma liguei ao nosso momento.


Em 1968 houve esse movimento importantíssimo para a democracia e para a liberdade de expressão, um movimento que começa na França e rapidamente se expande porque era premente que todas as sociedades discutissem a questão da liberdade.

No Brasil vivíamos a ditadura militar com os absurdos que provocaram lutar.


A partir dali avançamos muito na conquista dos direitos de liberdade como um todo, principalmente no universo LGBTQiA+ _ em contrapartida vemos o avanço da direita no Brasil e no mundo. 

De forma que é sempre bom lembrar que a luta não acabou e os símbolos usados aqui querem dizer que nosso diálogo não para na proibição.


Tem-se falado sobre censura. Eu queria falar de sexo. E de maneira livre.


Aqui falo mais de encontro do que sobre o erótico em si. 


Desejo que estejamos abertos para o novo e para um diálogo franco, que qualquer reflexão caminhe no bom sentido, com tesão e que possa fortalecer nossos encontros reais.


Eu queria que sexo não fosse tabu …

“ … como dizia um dos cartazes carregados pelos manifestantes pelas ruas parisienses (1968), “destruir é já começar a construir”.”


O símbolo de proibido para menores é uma mão com o limite de idade.



O símbolo aqui é diferente pois eu não queria colocar a limitação de idade,

eu não queria proibir nada. Só provocar.




A imagem usada nesse texto sobre maio de 1968 _ leia

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/maio-1968-historia.phtml


Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

https://pixabay.com/pt/users/geralt-9301/

 



domingo, 18 de setembro de 2022

Depois do ataque dos cães

 


Da minha janela ouço

Os cães que só fazem latir

Meu coração também bate 

A toa

Os da minha infância

eram verdadeiros lobos de ataque

Aprendi a fugir 


Agressivos Pitbulls e Dobermanns me assustam

Quando não durmo

Quando não durmo 

Brinco sem graça entre imagens de boys, perros, lobos e dogs


Quando nos conhecemos transamos 

como lobos _ à exaustão 

como adultos conversamos

os cães aparecem

Alterno imagens que revelam

Nós conversamos demasiado

Enquanto aguardo o ataque do lobo paralisado

que demanda fugir


Depois para dormir ou para seguir adiante

Ouço uma canção de meu pai

Para momentaneamente esquecer

Momentaneamente afugentar 

O lobo, a transa 

O medo e os cães que ladram


domingo, 7 de agosto de 2022

Final


Nó no peito é coisa comum de despedidas de sala de embarque, esse tinha seu tom de específico, sua particularidade embora todos os nós no peito tenham particularidades, porque cada história é única dentro do seu adeus.

Marina e Angélica despediram-se após o café no aeroporto.
Elas enterraram um amigo.
Um amigo se foi deixando ainda uma última história para contar.
Uma história que carregava muito mais que um segredo (às vezes um segredo não é algo bombástico mas uma coisa simples e não revelada a tempo. Como um rolinho de filme de máquina fotográfica encontrado na caixa das lembranças escondidas).

Uma história de perdas que trazia um inalcançável sentimento de que conhecemos somente a metade de uma verdade.

Angélica deve seguir sua vida pacata remoendo, vez em quando, sentimentos adormecidos dos quais não se permitiu reviver, mas decidida a deixar o desejo ficar no passado.

Marina segue de volta para Portugal deixando algo mais do que saudades do Brasil. Ela andava refletindo sobre o processo de envelhecer e para não esquecer anotou:

As vezes Morrer é apenas 
não ser mais visto, 
Enquanto, e por outro lado
viver é permanecer na memória

Todas as pessoas trazemos no campo do parcialmente conhecido. Perdemos algo por não saber tudo sobre o outro, ou melhor, perdemos algo ao não nos aproximar.
Marina estava decidida a não deixar muitas histórias para trás, iria contar as coisas que viveu e compartilhar mais. Queria guardar o passado numa caixinha mais transparente possível.
 
E levantou a cabeça pois só há um caminho a seguir.
Como num avião como esse que não dá marcha a ré.Pensou isso no momento em que olhava o Brasil se afastando da janela do TAP VOO 2454.

Estava sentada na janela, perto de uma adolescente, entre elas havia uma cadeira vazia, então a jovem de cabelos curtos, que tinha um lado da cabeça raspada à máquina zero, se inclinou um pouco tentando olhar pela janela no momento da decolagem. Ela notou com um sorriso de curiosidade aquela senhora desconhecida com olhos úmidos que dobrava lentamente o papel que trazia nas mãos ... meticulosamente em quadradinhos pequenos ... até por fim guardar o papel no bojo do sutien ... então trocaram um olhar de cumplicidade enquanto reclinavam as poltronas para a posição mais confortável para aguardar a chegada ao seu(s) destino(s).



quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Carta de resposta (2)

 Recife, 08 de maio 1996



Estavas nas entranhas de mim

Em todas as mãos que me tocaram

Eu vi sua face em tantas outras


Ah meu Nuno,

Depois que voltei ao Brasil tudo lembrava você e foi bem aos pouquinhos que os outros corpos pararam de ser comparados ao teu.

Daí acontece tudo isso, esta avalanche de tristeza nos invadindo.

E agora?

Agora

Me sinto numa encruzilhada


No fundo queria que agora sua carta me encontrasse casado ou perdidamente apaixonado por outro alguém. Eu queria ter uma desculpa 

(Uma desculpa qualquer pelo amor de Deus!)


Qualquer desculpa passa por uma consulta ao meu coração, eu acho… sobre o amor, sua falta, o tempo e o conjunto de tudo isso.


Sua carta me encontrar agora, assim, como estou hoje, me desconcerta e muito.


Te amo com força, pois estás absolutamente inscrito em mim todas as marcas como me disse, mas agora também eu trago uma dor aqui comigo com tudo que se passou … eu não consegui ser o que você queria … e você não conseguia deixar o Kris … daí então foi bom assim como tudo aconteceu.

Ele acabou precisando muito de você e você estava lá.


Fora isso eu

não tenho outra desculpa dessas plausíveis.


Conversei com a Clarice, ela falou que quando você não tem desculpas plausíveis você tem que ir. Será que é assim?

Teria eu que ir?

Se não tenho nada aqui, nem pessoas que me prendam. Deveria ir?


Tem o trabalho aqui, estamos bem envolvidos no processo de comunicação e até … ofereceram-me 1 ano como ombudsman lá no jornal, mas confesso mesmo isso não me é uma desculpa.

 

Temo que nosso tempo passou. Que seja um erro brigar com Deus, com os deuses do tempo que arranjaram todas as coisas


E sobre essa intensidade que você falou? Pensei em várias coisas … sobre intensidade, sobre o Kris, sobre o amor, uma palestra que vi no mês passado e também um filme que assisti.


Lembra quando Kristofer falou que não era gay? Quando ele falou que transitava? E a gente riu muito daquilo! Transitava. Era um ótimo verbo para nós. Todos nós. 

E juntos pensamos no Mário de Andrade que amar era verbo intransitivo. 

Lembrei quando ele me perguntou como é que podia ser tão intenso … eu disse que não sabia, mas eu seguia meus instintos. Que aprendi a transar com homens seguindo meus instintos. Massageava as bolas porque gostava de ter minhas bolas massageadas … Botava a boca onde gostaria de ser tocado e chupado. Eu ia fazendo no outro o que eu gostava que fizessem em mim. Isso que é diferente do sexo com uma mulher e como aos poucos fui me distanciando delas… o sexo acaba sendo nem melhor nem pior … é só diferente. 


Daí que sexo com homens é o que considero real (ando pensando assim … mas exatamente nesses tempos em que é tão perigoso sexo entre homens), então, e ao mesmo tempo, estou me distanciando e morrendo de medo. Não sou mais tão ousado e não tenho mais saído tanto, descobri que é possível me recolher um pouco e essa coisa da Aids que me dói muito ter todo esse cuidado. E ver que pessoas estão morrendo.


Estou também absolutamente só. E eu sei que você me completaria …


Assisti ao novo filme do Peter Greenaway O Livro de Cabeceira … foi bem comentado em Cannes. Mas causou grande impacto. tive que rever para fazer uma resenha pro jornal. A personagem principal vem de uma tradição japonesa de escrever sobre a pele dos homens e vai fazendo nos seus amantes um livro em vários capítulos.

Escrever na pele (tudo a ver comigo), depois quando ela se separa da mãe numa estação indo para os EUA, ela diz para a mãe:

-Eu te amo mas preciso ir.


Daí, nessa passado fui numa palestra aqui da Federal com meus amigos revolucionários (como você diria), a palestra era sobre o amor. O amor que não existe. Falava que o amor é uma invenção, que se nunca tivessem nos contado sobre o amor, a gente jamais amaria. Saí refletindo ... 


Sim é que eu concordo com isso! Sério! Achei bem pertinente. O amor é uma construção! 


 … mas daí … cheguei à conclusão de que Eu até concordo. Mas … pensei 


-Agora é tarde!

Tarde demais para eu desacreditar no amor.


Tudo isso me fala da complexidade das coisas. 

Eu que nunca pedi que me entendam, 

Eu te peço agora que entenda. 

Que me escute. 


E me ame da maneira como você puder.


Mas agora eu não consigo ir ficar com você.


Espero que esteja bem sempre,


Seu

JP 

sábado, 30 de julho de 2022

Carta de resposta (1)

Marina olhou para Angélica.

As amigas estavam sentadas no café do aeroporto.

Fiquei de te mostrar a outra carta, com a resposta do nosso amigo para o Bruno. Foi quando li que a ficha mais dolorida caiu, Marina falou. O Bruno se suicidou e a gente nem ficou sabendo.

-Olha que coisa! JP não vai para Suécia e meses depois o cara se suicida. 


Parece que ele tinha respondido não para o Bruno, para não dar esperança ou para ter tempo de pensar, sei lá. Só que no fundo ele estava se preparando, tava com planos de se mudar para lá. A sobrinha que me falou. Mas aí não deu tempo pois o cara morreu antes.


Me entristece descobrir que a gente não sabia nada disso. Tudo isso acontecendo com ele … guardar um segredo é uma coisa, mas viver uma vida secreta …


perguntei para a sobrinha do JP, sobre a mudança de comportando dele … ela não deu tantos detalhes, mas falou que antes antes ele viajava muito. Falou de histórias da família, de viagens e festas … perguntei as datas … ela falou do boom das viagens em 1997 dele da família e depois nada. Ele mal queria sair da cidade nem pro Porto, onde a família tinha casa ele foi mais. Ficou pacato.

Fingia ser feliz sim. A família não via nenhum traço de tristeza ou depressão, mas o fato é que perdeu aquela energia e viço do nosso tempo … mudou, envelheceu cedo.


Não sei você, amiga, nem como era a transa de vocês com ele … mas quando eu o via extasiado, depois do sexo sentia uma coisa… Sabe, um dia terminamos na cama quando eu ia me levantar para pegar água, olhei para ele dormindo extasiado, meu marido sobre o peito dele. pensei: -suguei a energia desse homem … sabe ..  não do meu marido, do JP mesmo. Como se ele fosse muito mais jovem que a gente - e nossa idade era bem próxima, não é mesmo? Era como se ele tivesse mais energia que nós e estivesse transferindo, doando nesses contatos meio vampiresco, entende? Era tão cheio de vida ele …


Angélica estava séria e desconcertada. Não queria falar das experiências passadas.


Sim … a carta. Leia esta.

Esta sim é a mais triste na minha opinião.

Tome.

Aqui JP responde ao Bruno que não vai pra Suécia ficar com ele ...

Tem coisa mais triste que dizer

te amo mas eu não vou?



(Continua)