enquanto vejo anjos,
enquanto penso em escondê-la,
enquanto saio do vagão,
enquanto enxugo os olhos com as costas das mãos,
enquanto, por fim, desimporta que me vejam chorar.
CINCO
"Não era pinga não, moço, foi só uma tentativa de suicídio. Só isso!" Eu retruquei grave e irônico a um cara que não havia visto nada da situação, mas minha ironia é coisa incapaz de ser percebida por certos tipos de pessoas que destilam palpite infeliz.
Ao mesmo tempo, uma senhora chorava copiosamente. Nem era parente dela o moribundo. Como eu, ela não conhecia aquele que tentara se jogar na frente do metrô.
Pensei na mulher. Essa que chorava, como um anjo emocionado com a vida infeliz e desesperançada. Desesperança de vida é uma coisa muito triste. Assim, imediatamente quando pensei em seres anjos … que a primeira lágrima caiu.
QUATRO
Os funcionários do metrô por fim haviam chegado e arrastaram o moribundo para fora do trem. Eu vi se formar um aglomerado em volta e sobre ele deitado no chão da estação esperança, chamada Santa Cruz.
O cara espumava pela boca e perdeu os sentidos enquanto carregavam ele.
Ao que tudo indica havia ingerido algo … tipo muitos comprimidos, antes da tentativa de pular na via do metrô.
O anjo que carregou a mochila dele para fora do vagão gritou o quanto era pesada. Talvez a mochila pesava um tanto mais que ele, estava cheia de acontecimentos infelizes. Foram quatro pessoas para carregar um homem não tão grande, não tão gordo, cujo peso era o peso de uma vida. DAquela vida.
TRÊS
Um anjo falou pro outro "eu já passei por isso. É difícil, mas consegui me livrar com muita oração" Ao que o outro respondeu "é que são tão diferentes os casos não? A gente tem que saber o que leva um sujeito a um desespero tão grande. Os desesperos não devem ser iguais". Eu gostava da conversa. Então um anjo interrompeu perguntando se alguém sabia para onde ele estava indo.
"Para o Tietê" o outro falou. "Ele é do interior". Interior!
"Você sabe o nome dele" eu perguntei tentando não ser tão inerte e inútil. Descruzei rapidamente os braços já que posso ser tudo, menos indiferente.
"Perguntem a ele pelo nome, talvez de alguma forma vai sentir algum acolhimento se chamarem ele pelo nome", falei. O anjo de óculos retrucou que não adiantava e qualquer assunto, qualquer tentativa faria ele desabar. Foi mesmo.
E mesmo assim o anjo sentado perguntou o nome do moribundo.
Ele não respondeu e segurou a mochila que estava no chão, como se planejasse sair correndo dali e não-subitamente uma nova onda de choro compulsivo o impediu.
Olhou pro celular e o enfiou de volta no bolso. Quando o anjo sentado falou "olha, ele tem um celular", tive a certeza que pensava em tomar dele o celular atrás de respostas ou informações que pudessem dizer quem ele era, por que chorava, e por que a morte lhe era a única solução. Qualquer coisa que pudesse dar conta da nossa tristeza, também seria bem-vinda. Qualquer coisa. Ouvir aquele choro comovente chegava a ser desesperador.
DOIS
"Você não vai poder sair de perto dele" disse um ao outro. Daí me intrometi entre seus olhares, e notei que eles, anjos, ou haviam saído de casa sem destino, ou estavam em rotas alteradas para fazer esse atendimento. Ou talvez não teriam mais o que fazer nessa noite.
Já eu... Eu tinha. Estava indo assistir a uma peça de teatro.
"Você vai até o Tietê com ele, e se quiser eu vou junto pra dar uma força". Disse um.
"Sim" respondeu o anjo de óculos.
O anjo sentado falou que tinha percebido o olhar de desespero do cara quando estavam lá na plataforma mesmo, foi provavelmente por isso que conseguiram segurá- lo a tempo.
UM
Eu estava encostado na porta, absorto e sem noção da ação de anjos.
Depois do apito ensurdecedor de portas fechando, eles entraram trôpegos, nervosos e agitando o vagão na estação São Judas. Empurrando e segurando um sujeito que chorava copiosamente enquanto guiado, e alguém se levantou dando lugar, então sentaram-no próximo a mim.
ZERO
Eu, que não acreditava em anjos, só queria que Azrael não aparecesse esta noite.
*Fotos: Asas do Desejo e Tão longe, tão perto - de Win Wenders


